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Resolução CFP nº 01/99: uma conquista importante para a Psicologia brasileira



Publicado em: 31 de outubro de 2010

Ana Mercês Bahia Bock¹

Sempre me sinto muito honrada quando me pedem para escrever sobre a Resolução CFP nº 01/99, pois está nela minha assinatura. Mas quero começar este texto afirmando que minha assinatura representa, naquele texto, um conjunto de milhares de profissionais que, à época, estavam registrados nos 15 Conselhos Regionais de Psicologia (hoje 24 CRPs) e que responderam positivamente ao convite para debater uma proposta de resolução sobre a questão da orientação sexual das pessoas atendidas pelas/os psicólogas/os. A Resolução foi proposta pela Plenária do CFP (que havia tomado posse em dezembro de 1998) à Assembleia de Políticas, Administração e Finanças do Sistema Conselhos (APAF), e, durante um ano, foi debatida nos diversos regionais. Eventos, grupos de conversa, debates, publicações, matérias nos jornais dos regionais, mesas em eventos no campo da Psicologia, enfim, uma série de possibilidades de acesso ao conteúdo proposto foi desenvolvida, envolvendo muitos profissionais. O CFP buscou, ainda, referências internacionais que pudessem fundamentar o que se estava propondo e essa consulta demonstrou que já havia um grande avanço, em vários países da Europa e nos EUA, em especial, em relação à compreensão sobre os comportamentos e práticas homoeróticas (como se considerou correto denominar à época). A Organização Mundial da Saúde era a referência mais consistente; os Direitos Humanos também faziam coro com a OMS e exigiam o respeito e a aceitação desses comportamentos, práticas e orientação. Não havia dúvida: a Psicologia brasileira deveria avançar no sentido de sua atualização e o CFP deveria aprovar resolução proibindo outras compreensões fundamentadas em crenças religiosas e não na ciência. Assim, a Resolução CFP nº 01/99 tem essas duas bases: foi ampla e democraticamente discutida e significou uma atualização da Psicologia brasileira com as referências internacionais no campo dos Direitos Humanos e da Saúde.

Mas qual é a história da resolução? Em 1998, tomamos posse no CFP e recebemos uma mensagem do Movimento Gay da Bahia, em que seu presidente Luiz Mott nos enviava anúncio de um evento religioso que ocorreria em Minas Gerais, propondo-se a “curar” gays com a ajuda de um profissional psicólogo. Mott solicitava providências do CFP, mas nós nos demos conta de que não possuíamos nenhum instrumento que afirmasse a proibição desse tipo de atuação profissional. Nosso Código de Ética não se mostrou suficiente para isso. Então, convocamos profissionais psicólogas(os) que atuavam em clínica, educação e saúde e tivessem uma relação profissional especializada no campo da orientação sexual. Profissionais foram indicados após consulta às suas contribuições e atuações, assim como a seu reconhecimento social e profissional. Eram profissionais que atuavam no Hospital das Clínicas de São Paulo, com atendimento aos pacientes de cirurgias de redesignação sexual; em grupo de pesquisa em educação com trabalho de orientação sexual as escolas públicas de São Paulo; e em consultórios particulares, acumulando reconhecimento pelo trabalho nesse campo. Demos a eles a tarefa de produzir fundamentação e, se fosse o caso, propor texto para uma resolução disciplinadora do exercício profissional em relação à temática da orientação sexual.

O texto proposto por esses profissionais foi então entregue, na APAF, aos Conselhos Regionais que tinham a tarefa de fazer a consulta à categoria, pois reconhecia-se a originalidade da iniciativa e possíveis tensões ou polêmicas. Para a surpresa de todos, ele foi muito bem aceito e poucas coisas foram modificadas no texto original, permitindo que a APAF, de dezembro de 1998, aprovasse a proposta da resolução e tendo a plenária do CFP a aprovado em 22 de março de 1999. A ementa que a apresentou foi redigida como: “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual”. Em suas considerações, afirmou-se que a Psicologia é uma profissão de saúde e é importante sua atuação para superação de preconceitos e discriminações; que homossexualidade não se constitui como doença, nem distúrbio e nem perversão, acompanhando o avanço mundial da ciência e dos Direitos Humanos; reconheceu-se que há, na sociedade, uma inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida socioculturalmente e que a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade. As considerações da Resolução eram claras, seguras, atuais e ofereciam respaldo à decisão que vinha no texto seguinte, em que o CFP resolveu e, com isso, normatizou as práticas das/dos profissionais em Psicologia, exigindo cumprimento das regras éticas que disciplinam a não discriminação e a promoção do bem-estar das pessoas e da humanidade; que indicam a contribuição da Psicologia para o desaparecimento de discriminações e estigmatizações das pessoas que apresentam comportamentos ou práticas homoafetivas. Colocava-se fim a qualquer atuação que favorecesse a patologização dessas condutas e as ações coercitivas, até então desenvolvidas por profissionais da Psicologia. Tornava-se proibido participar de eventos que propusessem tratamento ou cura das homossexualidades e o pronunciamento nos meios de comunicação ou em eventos públicos que reforçasse preconceitos. 

E a resolução saiu para o mundo. O CFP recebeu prêmios pela iniciativa, tanto no âmbito do movimento gay quanto dos Direitos Humanos; estivemos em muitas revistas e jornais no Brasil todo; a resolução foi traduzida para o espanhol, francês e inglês, e fomos convidados pela Associação Americana de Psicologia (APA) para um evento em São Francisco, Califórnia (EUA), onde apresentamos e debatemos a resolução. Recebemos cumprimentos de entidades de outros países da América Latina e da Europa e de entidades brasileiras de outras profissões. Recebemos um questionamento apresentado pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), para o qual respondemos marcando um encontro entre nossas diretorias. Tivemos uma excelente reunião com dirigentes do CPPC e, juntos, realizamos um grande evento sobre Psicologia, Ciência e Religião, em São Paulo. 

As discordâncias foram então aparecendo no decorrer desses 20 anos. Até mesmo um projeto de lei foi apresentado na Câmara Federal como recurso para derrubar a resolução. Mas ela vem se mantendo, mostrando sua adequação e necessidade. Em 2018, o CFP publicou nova resolução complementar, nº 1/2018, que “Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis”. 

Os argumentos que embasam as críticas são todos de natureza religiosa e a ciência avança no sentido contrário delas, afirmando a superação das visões patologizantes da homossexualidade. 

A Psicologia tem orgulho de sua iniciativa. Está atualizada com as pesquisas científicas do campo, além de se posicionar com firmeza pelos Direitos Humanos. “A forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade” (Resolução CFP nº01/99). Não há cura para o que não é doença. É preciso aplaudir a ousadia da Psicologia. Parabéns, Psicologia!

PS: Espero que tenham compreendido o motivo do meu orgulho em ver minha assinatura na resolução CFP nº 01/99 e a força que a iniciativa democraticamente reuniu.

¹Ana Mercês Bahia Bock, CRP SP 2771. Foi presidente do CFP de 1997 a 1998; 1998 a 2001; 2004 a 2007.