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Retratos CRP SP: Elânia


Publicado em: 28 de novembro de 2020

16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres

“Eu segui o roteiro da menina periférica: terminar o Ensino Médio, casar, ter filhos e ser feliz pra sempre. Mas a gente sabe que a realidade não é tão romantizada assim”, diz a mulher que fita o mundo com olhos iluminados como quem olha uma tela de cinema. Elânia Francisca Lima é uma dessas mulheres protagonistas, uma mulher que até teve seu tempo de coadjuvante, mas logo assumiu a condução da narrativa e reescreveu seu roteiro a próprio punho, com criatividade e firmeza. Roteiro esse que teve uma grande virada na vida adulta.

Filha de Maria Zilda Francisca, trabalhadora doméstica, e de Zeneuzo, açogueiro, a menina que veio num ônibus de São João do Sobrado (ES) imaginava uma São Paulo como a terra das oportunidades. No entanto, a família se deparou com uma cidade enorme e hostil, assim que chegou ao caos da rodoviária: “Meu pai nem conseguia encontrar minha tia, que já morava aqui e estava nos esperando”. Depois de um tempo morando de favor, foram parar na ocupação Mandiocal, no Grajaú. Mal sabiam os pais, que, ao participar das primeiras associações de moradores, estavam construindo também os capítulos iniciais da luta pelo direito à moradia na metrópole. 

“Como o Mandiocal era perto de uma granja, tinha dias que fugia uma galinha ou outra e o pessoal ia atrás para garantir o almoço”, conta ela, rindo. Elânia sorri muito, mesmo ao dizer coisas difíceis. Nos finais de semana, o programa era ir ver corpo de gente que morria na região. “Era um tal de ‘nossa, vamos lá correr pra ver o rosto antes que coloquem um lençol em cima!’.” Não se tinha ideia do absurdo daquela cena. Da banalização da violência. E a vida seguia. Foi só depois de muitos anos que a ficha caiu: aquilo não era normal. 

Aos 19, com o ensino médio completo, Elânia cumpriu a expectativa e casou. Mas tinha algo pulsando ali dentro: era um querer ser dona de si. Até onde poderia chegar? Queria testar as bordas da história imposta e,  para ter o próprio dinheiro, foi estudar Psicologia e trabalhar. No Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Criança e Adolescente, ela entrou em contato com algumas pautas, ampliou horizontes e muita coisa começou a ganhar perspectiva. A Marcha Internacional de Mulheres no Centro de São Paulo causou maravilhamento. O maravilhamento teve seu efeito. “Quando eu encontrei aquele monte de mulher junta falando que a gente tinha direito ao respeito, à vida, à liberdade, pensei: Eu quero ter mais do que eu tenho aqui.” Só que quanto mais reivindicava equidade de gênero em seu relacionamento, mais sofria retaliações dentro de casa. “Para, que você tá a mais”, ouvia. 

Agora, Elânia respira fundo e dispara: “O modo como as masculinidades são ensinadas aos meninos e homens hoje também contribui para que cada vez que uma mulher avance, o homem retroceda. E na verdade não! Quando uma mulher avança, nenhum homem retrocede. Quando nós avançamos, os homens precisam entender que é também para ampliar o olhar sobre as masculinidades. Precisamos avançar coletivamente.”

Foram dois anos sofrendo violência psicológica e física: chacoalhões e discursos de posse, questionamento de sua competência, invalidação da família e ataques à autoestima, até que um estágio multidisciplinar de vivências acendeu mais luzes dentro da então estudante. “Percebi que os desejos que eu tinha eram desejos de liberdade legítimos. Estive perto de pessoas muito inspiradoras.” Em seguida, a separação aconteceu

A partir daí, pensar e discutir sobre as questões de gênero e sexualidade passou a ser fundamental na vida de Elânia. Eixo de trabalho e de papel no mundo. “É importante construir um olhar sobre a nossa potência desde a infância e a juventude com meninos, meninas e menines.” Afinal, muita reflexão é produzida pela garotada preta e periférica. “É impossível um roteiro servir para todas as mulheres. Por isso trabalho com meninas para que elas construam seus próprios roteiros.” Sempre juntas, claro. Se o relacionamento marcou o momento em que conseguiu identificar a violência, não foi o último. Outras situações surgiram e seguem surgindo no cotidiano, mas foram enfrentadas de maneira diferente. Elânia não estava mais sozinha. “Eu tenho outras mulheres para compor comigo, tenho outras pessoas para me fortalecer.”

O olho volta a brilhar. “E se, nos contos de fadas, você fosse o dragão? E a princesa, na verdade, fosse só esse roteiro pronto, deitado numa cama? O príncipe vem, invade o castelo com sua espada, mata o dragão, beija a princesa sem pedir, leva a princesa embora e vai viver feliz para sempre. Ou seja, a história é contada na perspectiva do príncipe!” Para ela, não existe viver feliz para sempre se o que nos protege é justamente o dragão. “O dragão pode ser suas amigas, sua família, seu desejo”, alerta. “Não sou contra o casamento, desde que o dragão possa existir e conviver. Então, meninas, protejam o seu dragão.”

Elânia tem 36 anos, é psicóloga, seu mestrado estudou como meninas periféricas do Grajaú vivenciam o apaixonamento. Atualmente faz doutorado na USP no programa Diversitas, pesquisando as pedagogias marginais em sexualidade que as periferias do extremo sul produzem na cidade de São Paulo. Elânia aceitou contar um pouco da sua história para campanha dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres do CRP SP e assim engajar mais mulheres e meninas nesta luta contínua e de todas nós. 

#PraTodosVerem: Nesta publicação, além do relato de Elânia, há duas fotos dela. Na primeira foto, Elânia está sentada olhando pela janela com uma cortina branca; atrás dela há uma estante e uma parede branca. Na segunda foto, Elânia está em pé, na frente de uma casa e olhando para a câmera. Elânia é uma mulher negra, adulta, de cabelos cacheados na altura dos ombros, olhos castanhos e veste calça jeans branca e camiseta de mangas longas em cor veste musgo.

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