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CRP SP Retratos: Vanuza


Publicado em: 8 de dezembro de 2020

"Ser mulher já é difícil neste País, especialmente no momento atual. Agora, ser mulher, indígena e nordestina, não é fácil mesmo.” A frase é de Vanuza Costa Kaimbé, liderança indígena que hoje está na Aldeia Multiétnica Filhos dessa Terra, em Guarulhos, São Paulo. 

Ela afirma que, por lá, a dominação masculina e a violência contra as mulheres são combatidas. "Sempre falo que não podemos aceitar as violências institucionais nem as violências domésticas. Que é preciso respeitar o corpo da mulher, entender que não é não. Queremos também estimular os estudos. Fazer com que as mulheres entendam que não deixam de ser indígenas se vão estudar, se moram numa zona urbana. Se vou ao shopping, posso seguir cozinhando no meu forno de barro em casa.”

Originária da Aldeia Massaracá, que existe desde 1600 e hoje está no município de Euclides da Cunha, na Bahia, passou muito tempo morando em São Paulo com planos de voltar à aldeia mãe para estar mais próxima ao seu povo. Sua trajetória, contudo, lhe mostrou que não era necessário voltar para atuar na causa indígena. Vanuza encontrou protagonismo na grande cidade. Hoje é referência de luta e coragem entre mulheres e homens.

Desde criança ela já se sentia diferente. Enquanto as primas e amigas brincavam de casar com os amigos, ela ouvia falar da Avenida Paulista na rádio. “Meu sonho era vir morar em São Paulo um dia”. Já adolescente, foi morar na cidade de Camaçari, na Bahia, com seus sete irmãos, mas lá não havia trabalho. 

Quando fez 18 anos, ligou para o tio que morava na capital paulista e simplesmente disse que estava a caminho. "Nem avisei minha mãe, nem meus irmãos, peguei o dinheiro da passagem e vim de ônibus. Era 1988.” Alguns meses após sua chegada, já dividia um quartinho em Diadema com uma amiga. Foram tempos difíceis. "Só tinha dinheiro para pagar dois meses de aluguel, e nós estávamos desempregadas. Garantíamos o almoço lavando pratos em um restaurante de amigos." Em seguida, Vanuza arrumou emprego numa fábrica de brinquedos de Diadema, até que os irmãos vieram da Bahia para a grande cidade morar com ela.

Nos anos seguintes, trabalhou de auxiliar de crédito e vendedora. O tempo foi passando e acabou se sentindo longe do movimento indígena, apesar de sempre acompanhar como estavam as coisas na Bahia. Em meados de 1997, sua aldeia foi demarcada. A vontade de voltar aumentou. Foi então que decidiu fazer o curso técnico de enfermagem, com 35 anos. “Pensei: se eu não estudar agora, não estudo mais!”.

Nessa época, descobriu a Casa de Saúde Indígena e o Ambulatório do Índio no Hospital São Paulo. "Eu já estava envolvida em movimentos sociais, mas não diretamente com o movimento indígena. Quando descobri esses espaços, decidi que era lá onde eu queria trabalhar.” Atuou durante 10 anos na Casa de Saúde Indígena de São Paulo. Foi demitida duas vezes. "Eu queria um trabalho humanizado, uma saúde indígena diferenciada. Meus parentes vinham lá da aldeia, chegavam aqui com tudo diferente, era muito assustador. Eles viam em mim não uma funcionária e sim uma amiga, um parente porque é assim que a gente se chamava. Eles me procuravam para o atendimento, mas eu sempre era colocada na salinha de castigo.” Vanuza chegou a fazer uma denúncia formal sobre as más condições de trabalho e a falta de materiais e a desumanização no atendimento junto ao Ministério Público, o que gerou mudanças na Casa. “Mas eu fui mandada embora e isso me deixou muito triste. Não tanto pelo dinheiro, porque eu me virava: vendi DVD na rua, vendi alho, fiz faxina, nesse meio tempo que eu estava desempregada.”

O desejo de voltar a trabalhar junto ao povo indígena fez com que tomasse coragem e fosse prestar vestibular para enfermagem. Passou e estudou durante um ano, mas teve que parar, pois não tinha condições de pagar. "Eu já sabia da possibilidade de bolsa no programa Pindorama, da PUC SP, mas eu tinha medo de não passar no vestibular." Com seis meses de reforço de um professor particular voluntário, ela conseguiu. "Quando cheguei na sala de aula, achei que não ia conseguir acompanhar, mas eu tinha que honrar o fato de eu ser a primeira dos irmãos a estar na faculdade e incentivar meu filho também.” Vanuza, que tem 50 anos, termina sua graduação em Serviço Social em 2020 e Felipe, seu filho, se forma no ano que vem. “É uma alegria muito grande, uma conquista!”

Durante os estudos, começou a articular com as mulheres indígenas na aldeia de Jaraguá, participou dos primeiros encontros indígenas do estado e foi para os acampamentos Terra Livre em Brasília. "Me dei conta que o Brasil é indígena e que eu não precisava voltar para a aldeia mãe para fazer diferença na nossa luta", avalia. “Me sinto fortalecida quando vejo minha vida independente. Resolvi estudar aos 45 anos, acho que isso foi corajoso. Escolhi não dividir minha vida com um homem, me sinto feliz de ser mulher e ter minhas decisões. Sinto orgulho de ter criado um filho sozinha, com a minha postura. Nunca bati em meu filho e nunca permiti agressão verbal ou física de homem nenhum. Aqui na aldeia, nós mulheres, nos protegemos e nos ajudamos. Fazemos um trabalho de conscientização com maridos e parceiros.” 

Ela faz uma pausa, olha para a mata molhada a poucos metros e sorri. “Pode ser que alguns me achem um pouco chata ou autoritária, mas todo mundo me escuta. Eu não tenho medo de homem nenhum.”

Vanuza Kaimbé contou um pouco da sua história ao CRP SP sob uma torrencial chuva de final de novembro, na Aldeia Multiétnica Filhos dessa Terra, em Guarulhos, São Paulo. Ela compartilha a sua trajetória para somar aos 16 Dias de Ativimo pelo Fim da Violência contra as Mulheres. 

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#PraTodosVerem Nesta matéria há duas fotografias de Vanuza Kaimbé em preto e branco. Ela é uma mulher indígena, de pele morena, cabelos escuros na altura dos ombros e olhos castanhos escuros. Na primeira foto, encara firmemente a câmera. Veste camiseta branca com os dizeres “Lute como uma mulher indígena”, usa um blazer acinturado preto e têm óculos de grau, de armação pretas, pendurados na gola da camiseta. Leva um adorno indígena (um pequeno cocar) no topo da cabeça. A segunda imagem é um retrato do perfil de Vanuza, que agora usa os óculos no rosto. Suas mãos tocam levemente o rosto.