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26 de junho – Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura


Publicado em: 26 de junho de 2023

Tortura: meio cruel e brutal de ameaça, violência ou punição que causa intenso sofrimento físico e mental às vítimas, realizado por livre deliberação de torturadoras e torturadores, de acordo com a Enciclopédia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)[1]. Trata-se de um conceito tão complexo que há também quem defenda o alargamento da definição mais tradicional deste verbete, a exemplo do jurista José Roberto Nalini, responsável por alertar que as lesões morais, veladas ou explícitas, detenções ilegais, submissão de indiciadas e indiciados e outras formas de constrangimento também são formas de tortura[2].

É uma ampliação fundamental, em especial por tratarmos de um país ferido com o autoritarismo, tão machucado e traumatizado com torturas históricas e duradouras, como foi o caso das inúmeras violações aos Direitos Humanos ocorridas durante o período colonial, na Ditadura Militar, bem como as expressões da violência estrutural presentes nas periferias, locais onde a democracia ainda não chegou, conforme abordam os movimentos sociais. Em terras brasileiras, a tortura também é utilizada permanentemente como mecanismo de punição e controle, principalmente sobre os corpos de pessoas negras, pobres e periféricas. Por ser um problema de alcance mundial, tornou-se iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU ), desde 1997, a cada 26 de junho, reforçar o apoio às vítimas dessas ações violentas utilizadas principalmente pelos agentes e órgãos repressivos do Estado[3]

Apesar de poder ser definido em poucas palavras, esse crime inadmissível pode ser considerado como um dos mais hediondos entre os existentes. Tão terrível e, ao mesmo tempo, tão presente, esse delito apresenta números cada vez mais assustadores. O relatório “Vozes e Dados da Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa 2022”, realizado pela Pastoral Carcerária, revelou o aumento de 37% nos casos de tortura em presídios brasileiros entre janeiro e julho de 2022. As expressões foram variadas: negligência na prestação de assistência material, jurídica e à saúde, tratamento humilhante e degradante, agressão física, agressões verbais, revista vexatória e violações ao direito à visita, tópicos que reforçam a visão de Nalini a favor do alargamento do conceito de tortura no Brasil[4].

Já os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dão um panorama ainda mais amplo: de 2019 a 2022, mais do que dobraram os relatos de torturas de pessoas encarceradas e seus familiares. Em termos quantitativos, foram 44,2 mil denúncias dessa natureza feitas a magistradas e magistrados durante audiências de custódia[5]. Fora do universo criminal, as torturas também acontecem e têm suas faces hediondas relatadas nos noticiários, a exemplo de inúmeras mulheres ameaçadas pelo risco de feminicídio e de crianças amarradas em um estabelecimento comercial no centro de São Paulo (SP)[6]. A constatação da piora dos casos de tortura nos últimos quatro anos foi realizada em evento da Organização das Nações Unidas (ONU) em março de 2023. Uma denúncia da ONG Conectas, de outras entidades da sociedade civil, e endossada pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, repercutiu midiaticamente. Por meio de um documento pormenorizado, mostrou-se que o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Brasil teve seu orçamento enfraquecido e suas ações, negligenciadas. Além disso, houve o esvaziamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o silenciamento da luta pelos Direitos Humanos, em especial das pessoas torturadas[7]. As prisões, por sua vez, são definidas como fábricas de tortura, segundo Silvio Almeida[8]. Ele tem razão! Necessitamos de ações e políticas efetivas de combate à tortura.

Embora abolida em campo internacional em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a tortura ainda é fortemente negligenciada no Brasil. As faces desse ato hediondo também nos confrontam com a violação sistemática da Lei nº 9.455/97, que define os crimes de tortura. Indignação é uma palavra-chave nesta análise. De um lado, há a legislação de 1997, que define pena inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, de dois a oito anos de reclusão, para quem “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa; submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”[9] De outro, há a omissão e o desrespeito à dignidade humana em casos como o não-reconhecimento jurídico de que houve crime de tortura no caso de um homem que é carregado com pés e mãos amarrados por policiais militares[10]. Trata-se de uma mensagem equivocada repassada para a sociedade, baseada em uma legitimação e de uma licença para torturar cidadãs e cidadãos.

A Psicologia tem papel fundamental no apoio às vítimas de tortura e no combate a esse crime estrutural, ainda tão ligado a posturas fascistas, racistas, machistas, xenofóbicas e coloniais. A omissão resulta em penas de natureza legal e também moral, desse modo, é necessário combater as marcas psicológicas desse crime - dores, sofrimentos, traumas, angústias, síndrome do pânico, entre outras ecos e desdobramentos na subjetividade da afetada e do afetado - em suas vítimas, ao mesmo tempo em que se luta e denuncia as inúmeras formas de tortura que ocorrem cotidianamente. Ao se posicionar de maneira inequívoca pela defesa dos Direitos Humanos, o CRP SP reitera nessa data, o compromisso com a resistência e a luta contra todas as formas de violência e tortura. Que a impunidade e investigação precária deem lugar ao cumprimento efetivo da Lei nº 9.455/97.

Para melhor materializar e elucidar essa realidade, convidamos as psicólogas e os psicólogas para refletirem e agirem contra a barbárie da tortura, que ainda perdura em pleno século 21, por meio do compartilhamento dessa publicação, do debate do assunto em rodas de conversa e da denúncia sistemática de cada situação análoga à tortura.

 

#ParaTodosVerem Card quadrado, fundo em tons marrons e lilás acinzetado, fotografia de uma mão segurando uma grade enferrujada, coberta por arames farpados. Elementos gráficos ilustram a parte inferior da imagem, com o desenho de um calendário de mesa. (fim da descrição).

 

 

[1] BALDAN, Édson Luís. Tortura. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, São Paulo, agosto de 2020. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/424/edicao-1/tortura. Acesso em: 21 jun. 2023.

[2] NALINI, José Renato. Ética geral e profissional, p. 445 In: BALDAN, Édson Luís. Tortura. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, São Paulo, agosto de 2020. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/424/edicao-1/tortura. Acesso em: 21 jun. 2023.

[3] BVSMS. 26/6– Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Biblioteca Virtual em

Saúde, Brasília, s.d.. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/26-6-dia-internacional-de-

apoio-as-vitimas-da-tortura/. Acesso em: 17 jun. 2022.

[4] NINJA. Casos de tortura em presídios aumentaram 37% de janeiro a julho de 2022, denuncia Pastoral. Mídia Ninja, s.l., 13 jan. 2023. Disponível em: https://midianinja.org/news/casos-de-tortura-em-presidios-aumentaram-37-de-janeiro-a-julho-de-2022-denuncia-pastoral/. Acesso em: 21 jun. 2023.

[5] REINA, Eduardo. 34 anos depois da aprovação do fim da tortura, número de casos explode no país. ConJur, s.l., 03 ago. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-03/34-anos-depois-aprovacao-fim-tortura-casos-dobram-pais. Acesso em: 21 jun. 2023.

[6] BOCCHINI, Bruno. Polícia flagra tortura em três crianças no centro de São Paulo. Agência Brasil, Brasília, 15 mar. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-03/policia-flagra-tortura-em-criancas-no-centro-de-sao-paulo. Acesso em: 21 jun. 2023.

[7] STABILE, Arthur. Brasil é denunciado em órgão da ONU por falta de ações de combate à tortura. G1, São Paulo, 14 mar. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/14/brasil-e-denunciado-em-orgao-da-onu-por-falta-de-acoes-no-combate-a-tortura.ghtml. Acesso em: 21 jun. 2023.

[8] RFI. Tortura: Brasil viveu quatro anos de silenciamento e abusos do poder público, denuncia ministro da ONU. UOL, s.l., 20 abr. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2023/04/20/tortura-brasil-viveu-quatro-anos-de-silenciamento-e-abusos-do-poder-publico-denuncia-ministro-na-onu.htm. Acesso em: 21 jun. 2023.

[9] BRASIL. Lei Nº 9.455, de 07 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm. Acesso em: 21 jun. 2023.

[10] BOEHM, Camila. Justiça descarta tortura em caso de homem amarrado por cordas. Agência Brasil, Brasília, 12 jun. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-06/justica-descarta-tortura-em-caso-de-homem-amarrado-por-cordas. Acesso em: 21 jun. 2023.