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19 de Abril – Dia da/o Indígena


Publicado em: 19 de abril de 2022

Hoje, 19 de Abril, é Dia da/o Indígena! O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo compreende que essa não é uma data de comemoração, mas sim um dia que simboliza um histórico de lutas. 

Partindo desta premissa, a Comissão de Direitos Humanos e Políticas Públicas (CDHPP) do CRP SP convida psicólogas/os, estudantes e a comunidade que nos acompanha a pensar a data e sua relação com a Psicologia. 

Para isso, entrevistamos as psicólogas indígenas Thaynara Sipredi¹ (CRP 01/19721) e Geni Núñez² (CRP 12/21975) a fim de nos voltarmos às perspectivas sobre a concepção de saúde mental, processos de formação relacionados às práticas e saberes da categoria, correlatos às pautas dos povos indígenas. Confira a entrevista, na íntegra, abaixo!

O conceito de saúde mental veio a nós importado e chega aos povos indígenas de diversas formas, muitas vezes, racistas, ignorando inclusive fatores importantes e práticas de cuidado das diversas culturas. Como tem compreendido o que é saúde mental? 

Thaynara: Nós, indígenas psicólogas/os, costumamos nos referir à saúde mental como Bem Viver, por compreender que se referir somente como saúde mental não daria conta da complexidade que é pensar a saúde dos povos indígenas, afinal somos mais de 300 povos, com mais de 200 línguas. Pensar no Bem Viver é compreender o processo histórico deste país invadido e os atravessamentos de todos os tipos de violências que sofremos desde a invasão. É falar sobre a demarcação de terras, desmatamento, envenenamento dos rios e da terra, das várias invisibilidades e obviamente, de racismo. Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a Psicologia enquanto ciência e profissão consiga de fato acolher nossas demandas enquanto povos indígenas, de forma ética e antirracista, mas bons passos já têm sido dados, cada dia mais indígenas psicólogas/os pintando a Psicologia de jenipapo e urucum e psis não indígenas somando na construção.

Geni: Nós entendemos que a colonização não acabou, que ela continua vigorando inclusive no terreno das nossas subjetivações, de maneira que a descolonização dos territórios se faz junto da descolonização do imaginário, dos modos de ser e estar no mundo. A monocultura, nesse sentido, não incide apenas na terra, mas também no pensamento. Uma das principais características do pensamento colonial é o binarismo que vai recortando tudo em dois: natureza x cultura, humano x animal, mental x físico, razão x emoção, selvagem x civilizado etc. Essas divisões, embora se pretendam descritivas e meramente didáticas, são invenções que produzem efeitos políticos.

Para nós, povos indígenas, esse tipo de corte não faz sentido, pois nos entendemos de maneira integrada. Cabe refletir: que violência física também não é, igualmente, uma violência psicológica? Que violência psicológica também não é concomitantemente física? Não vivenciamos tudo isso em um mesmo corpo? Falando em corpo, ele também vem geralmente separado de mente, como se fossem partes destacáveis de nós mesmos. Esse fatiamento do sujeito, em que cada órgão ou região  do corpo é referente a uma área isolada da saúde, acaba tendo consequências severas na própria qualidade do acolhimento, que muitas vezes não é integrado. Se hoje mesmo em espaços hegemônicos já é feita essa crítica, é preciso reconhecer que, historicamente, nós, povos indígenas, sempre pautamos uma saúde coletiva (não como um segmento à parte dos outros, mas como a própria condição de qualquer saúde). Quando falo aqui de saúde coletiva, este coletivo vai além inclusive do domínio do humano. Para nós, povos indígenas, a relação de parentesco, carinho e afeto com os demais seres como rio, vento, água é indissociável da nossa própria saúde e alegria. Em cada uma das centenas de etnias indígenas presentes no nosso território, vemos que esse respeito à interdependência, à coletividade e à horizontalidade é das bases mais fundantes. Esse questionamento que trazemos quanto à toda saúde ser coletiva não diz respeito apenas a compreender a companhia de outros seres não humanos, mas questionar a própria delimitação do humano. Se precisamos do ar para viver, ele faz parte do nosso corpo? Se precisamos da água, onde ela começa e termina na designação de quem somos? O cuidado circular com a terra, a preocupação com a não exploração de outros seres não é, para nós, um gesto de benevolência ou salvadorismo, mas de compreensão de que nós mesmos somos (parte) da própria terra.

O racismo que muitas vezes sofremos vem muito deste lugar que são os diferentes marcos temporais. Para muitos profissionais não indígenas, nós seríamos seres do passado e eles, portanto, do futuro. Nós seríamos bárbaros e atrasados e eles, civilizados e desenvolvidos. Por terem essa alta autoestima quanto aos próprios valores é que tantos se colocam no lugar de tutela e retirada de autonomia de povos indígenas com a insígnia de um controle disfarçado de cuidado. É preciso, urgentemente, que esse caravelismo epistêmico de teoria e prática possa ruir, para que finalmente possamos construir coletivamente e de modo horizontal nossas alianças rumo a uma saúde coletiva.

Qual o significado desta data? Por que hoje falamos indígena e não índio? Pode comentar brevemente sobre o histórico de lutas e resistências que os povos indígenas têm feito? E quais os desafios da luta indígena na atualidade?

Thaynara: O 19 de Abril é comemorado por muitos, principalmente em escolas, reforçando estereótipos e nos colocando como figuras do passado, reforçando o racismo contra nós, indígenas. Costumamos ter o mês de abril como o abril indígena, é o mês que acontece, em Brasília, o Acampamento Terra Livre, que reúne indígenas de todo o Brasil. As lutas dos povos indígenas da atualidade não são tão atuais assim, já que desde que este país foi invadido, a luta e resistência se fizeram e se fazem presentes, por nossos territórios, nossa cultura, língua, espiritualidade, por nossas vidas. Os desafios também não são tão novos já que desde sempre acabar com nossa existência é um projeto político, e as violências são sempre usadas em nome de um suposto progresso, que contempla uma pequena parcela da população, parcela esta branca e rica. Apesar de todas as novas roupagens e da sofisticação que as violências vão adquirindo, século após século, nos mantemos vivos e resistentes. Como diz Eliane Potiguara em seu poema Oração pela Libertação dos Povos Indígenas: "Não se seca a raiz de quem tem sementes espalhadas pela terra para brotar". O termo ‘povos indígenas’ abarca nossas diversidades, singularidades, o pertencimento a um povo, não sou só indígena, eu sou Xerente. O termo índio foi dado pelo colonizador quando invadiu nossas terras, é um termo genérico que apaga toda a nossa diversidade. Como diz Daniel Munduruku: "Eu não sou índio, não existem índios no Brasil. Essa palavra não diz o que eu sou, diz o que as pessoas acham que eu sou."

Geni: Quando os colonizadores chegaram aqui, eles não viram nossas multiplicidades de línguas, costumes, modos de vida, eles viram aquilo que seu próprio olhar criou: o índio genérico. Desde 1500, essa projeção vem preenchendo com diversos estereótipos homogeneizadores esta identidade: o “índio” seria aquele sujeito sempre fora do lugar, pois se entende que nosso tempo e espaço seriam o de passado, que estaríamos sempre e necessariamente nus, que teríamos um único fenótipo, que não poderíamos usar celular e usar roupas (pois signos do presente destoantes do nosso real lugar que seria o passado) etc.

A expectativa do Estado era de que nós fôssemos o que ficou conhecido como “categoria social transitória”, ou seja, ao passo em que fizéssemos a transição de selvagens a civilizados, de bárbaros a cristãos, de animais a humanos, supostamente deixaríamos de ser indígenas e passaríamos a integrar outras categorias raciais. Após muita luta do movimento indígena, com a Constituição de 88, conseguimos assegurar, pelo menos no papel, nosso direito a nossas singularidades, modos de vida, língua, espiritualidade e costumes próprios. No entanto, mesmo com esse marco legal, ainda seguimos sendo alvos de políticas etnocidas e genocidas. Enquanto o genocídio visa ao extermínio direto, o etnocídio visa nosso desaparecimento simbólico por meio da perseguição às nossas línguas, através do critério do fenótipo único, através da exigência de se viver em terra demarcada, entre vários outros. Essas exigências são verdadeiros paradoxos, já que ao mesmo tempo que o Estado nos exige viver em terra demarcada para reconhecer nossa identidade, ele mesmo não demarca estas terras de fato, pelo contrário, favorece a continuidade das invasões de territórios indígenas. Então é preciso reconhecer que se hoje quase a metade da nossa população vive nas cidades (IBGE, 2010), isto não se deu por uma escolha livre, mas foi fruto de uma expulsão histórica. Da mesma forma, sabemos que pessoas negras, brancas, amarelas que vivem no Brasil em sua maioria têm, em algum momento de suas árvores genealógicas, alguma mistura genética, nem por isto são tratadas apenas como “descendentes de brancos”.  

Enquanto o racismo busca homogeneizar criando identidades homogeneizadoras como índio, negro, branco genéricos, nossa pertença étnica faz justamente o contrário. Nela, não é um fenótipo único que nos torna indígenas, mas é o fato de pertencermos a um povo e sermos reconhecidos por ele que define nossa identidade, através das nossas formas únicas de percepção de mundo, de línguas, costumes e espiritualidades específicas de nossas etnias. É também por isso que a luta contra o “índio genérico” é fundamental, pois o que defendemos é justamente a singularidade de cada povo e etnia. Sabemos que as tentativas de negação de nossas identidades atendem a propósitos políticos de continuidade da invasão e roubo dos territórios ancestrais e é por isto que é também papel da Psicologia se engajar nestes processos como um gesto de reparação histórica.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é um grande marco para nós, pois com ela temos firmado o direito à autodeclaração indígena, ou seja, se antes era um profissional não indígena que se autorizava a definir quem seria indígena ou não, agora nós mesmos é que nos autodeclaramos. Cada povo tem autonomia para definir os critérios de suas próprias identidades. Ressalto que esse “auto” da autodecleração é coletivo, não individual. 

Nossa principal pauta como indígenas no momento é a demarcação de terras. Ter o direito ancestral à terra é também o meio direto de combater o epistemicídio, pois é no viver, no cotidiano e nas relações que as línguas são mantidas, que a cultura é revigorada, que a espiritualidade é reflorestada. Com o direito à terra, temos a possibilidade de lidar de forma autônoma com alimentação, com as demandas de subsistência, com as práticas de saúde.

Ainda que em Abya Yala/América Latina, a Psicologia Social Crítica tenha reconhecida expressão e muitas vezes se mostre próxima dos povos tradicionais, o que a Psicologia como um todo pode ou precisa aprender/compreender?  

Thaynara: A Psicologia precisa aprender a ouvir os povos indígenas, compreender outros modos de viver, de se relacionar, de subjetivar. Entender que é preciso trabalhar em conjunto com pessoas importantes dentro dos territórios, com lideranças, pajés etc. Respeitar os saberes presentes dentro desses territórios, compreender que mesmo nas cidades, fora dos territórios, não deixamos de ser e não nos tornamos menos indígenas, repensar práticas para ser de fato ética. A formação em sua maioria ainda invisibiliza nossa existência, são pequenos espaços dentro desta trajetória da formação em que há discussão sobre as questões indígenas e normalmente em datas específicas, como o mês de abril. É uma formação que não permite compreender as questões indígenas e suas especificidades. Repito, para a Psicologia atender e contribuir com as demandas dos povos indígenas precisa primeiro compreender quais são estas demandas e os atravessamentos existentes e, para isto, é necessário nos ouvir, entender que ainda há pouco o que contribuir com os povos indígenas (o que não tira a importância da contribuição). O único caminho possível é nos ouvindo, nos lendo, sendo psicólogas indígenas ou não.

Geni: Um ponto de partida possível é reconhecer que esse compromisso deve fazer parte de uma ética do profissional da Psicologia. Temos todos de nos engajar em práticas de redução da desigualdade racial, de gênero, de classe e tantas outras. Nesse sentido, não é apenas aquele profissional que irá trabalhar em aldeias, por exemplo, que deve se instrumentalizar desse debate. Nós, indígenas, estamos em todos os territórios, na cidade, no campo, na periferia. Mas para além disso, para a erradicação do racismo, não é suficiente dar ênfase apenas às posições subalternizadas de uma relação. Em outras palavras, se nós nos construímos em relação, pessoas não indígenas também devem descolonizar suas práticas de pensamento, prática, ação e intervenção, quer trabalhem diretamente conosco ou não. É preciso falarmos mais sobre branquitude, por exemplo, sobre forma de reconhecimento e reparação da ferida colonial. 

Sabemos que a escuta é um elemento fundamental de nossa profissão, então lembremos disto nas intervenções que fizermos, pois a autonomia de cada sujeito deve ser escutada antes e em primeiro lugar de qualquer valor moral que o profissional possa ter. Que o vício salvacionista, catequizador e colonial não venha à frente da sensibilidade com a multiplicidade étnica de povos indígenas e que as profissionais da Psicologia possam alargar sua compreensão de saúde, de tecnologias de cuidado e de clínica, assim poderemos nos aliançar de maneira respeitosa com as diferenças que nos constituem no mundo. Por existências de floresta e não de monocultura!

¹ Thaynara Sipredi (CRP 01/19721) é indígena do povo Xerente, formada em Psicologia. Trabalha na clínica.  É membra da Comissão Especial de Raça e Povos Tradicionais do CRP 01/DF, membra da Comissão de Direitos Humanos do CFP e membra da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos (ABIPSI).

² Geni Núñez (CRP 12/21975) é ativista indígena guarani, psicóloga, mestra em Psicologia Social e doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. É membra da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos (ABIPSI) e coassistente da Comissão Guarani Yvyrupa.

#PraTodosVerem: nesta publicação há um card de fundo amarelo e vermelho. Dentro de um círculo, as fotos de Thaynara Sipredi e Geni Núñez.